A mensagem de Viktor Frankl
Olavo de Carvalho
Bravo!, novembro de 1997
No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens
realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida:
não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este
século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia
tomado - e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se
orgulham de ser "homens do seu tempo", alguém muito maior do que o
século.
Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande
nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a
inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela
dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à
missão do ser humano sobre a Terra.
Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe
revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração.
Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de
rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais
bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.
O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de
uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no
campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não
deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em
torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam
o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de
missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o
prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por
cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social,
cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória.
Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e
cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela
esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela
transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse
senso de dever era a manifestação concreta do amor - o amor pelo qual um homem
se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna
maior que ele mesmo.
O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns
homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento
exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que
Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda.
Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança
de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não
somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou
também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.
Assim ele registra, no seu livro Man's Search for Meaning, uma
das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:
"Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida
enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como
verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro
e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do
maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a
salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem
nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que
seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa
condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em
ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus
sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o
homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua
bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz
de compreender as palavras: 'Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de
uma glória infinita'."
Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças
noogênicas. Noogênico quer dizer "proveniente do espírito". Além das
causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um
sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do
absurdo, da perda do sentido da vida: "O homem, dizia ele, pode suportar
tudo, menos a falta de sentido."
Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos
mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a
logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados
para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão
decisiva: a busca do sentido.
Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma
esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de
seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada
dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um
sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não
tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida,
enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl
não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura
logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da
objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe:
trata-se apenas de encontrá-lo.
Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é
encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do
terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e
que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O
dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da
existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por
assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e
fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade
pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde
dentro, o dever a cumprir.
Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos,
mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a
logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central
do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por
que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima
uniforme, válida para todos - é a obrigação imanente que cada um tem de
transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma
vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se
impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.
A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais
significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela
desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura
moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana,
para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas,
etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem
os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais -
os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força
cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico
do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas,
semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo
de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da
logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em
inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em
que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da
vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra
onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance
mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação
privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver:
a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática,
cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma
coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o
valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para
dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público
universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a
lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:
"Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as
câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos
escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais
se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio
Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de
umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como
inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores:
tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente." (Sêde de Sentido,
trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)
Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos
intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de
acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a
responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem
só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança
acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem
de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim
determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.
Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas
doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o
caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi
porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido
em busca do homem: "SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus."
(Publicado na revista Bravo! de novembro de 1997, e reproduzido em
"O Imbecil Coletivo II")
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