domingo, 23 de janeiro de 2011

Resposta a um amigo


Esse texto é sobre o crer e o descrer na existência de Deus, em resposta a um amigo que se tornou ateu. 

Hamilton Furtado
Em 21 de janeiro de 2011

Antes de mais nada acho importante dizer algumas coisas.

A primeira é que a convicção sobre Deus (a existência ou inexistência) é essencialmente individual sob quaisquer circunstâncias. Alguém pode olhar para a Lua e concluir “Deus existe”, enquanto ao seu lado outra pessoa olha para mesma Lua e conclui “Deus não existe”.

Outra coisa é que as questões relevantes ao questionador teísta geralmente são diferentes das que intrigam o questionador ateísta. Acho inclusive que esse é um dos principais motivos que levam principalmente o lado ateísta a deduzir que os crentes não questionam sua fé, mas também o oposto acontece.
Sendo assim, nessa minha resposta não há a menor pretensão de convencer a quem quer que seja de que meus questionamentos sejam extensos o suficiente ou profundos o suficientes do ponto-de-vista de terceiros, pois como disse, há um sério fator pessoal envolvido.

Isso posto, acho que dá para falar um pouco da minha experiência pessoal.

Eu já nasci em um lar cristão. Há quem possa achar que isso é uma condição viciante para o processo, mas eu entendo o contrário. Eu penso que é a condição mais justa do ponto-de-vista da igualdade. Muita gente não nasce em um lar cristão, ou quando é cristão, não vive realmente como se Deus existisse. Assim, acaba jamais tendo em sua vida uma noção completa do que seja crer em Deus, ser um cristão e a cristandade.
No meu caso, eu tive a oportunidade de conhecer e entender a mensagem cristã e contemplar o cristianismo como princípio de vida posto em prática. Uma vez que o cristianismo só faz sentido quando posto em prática, fica muito mais fácil entender certas coisas dessa forma.

O grande modelo de cristão para mim era e é até hoje a minha mãe. Seu eu tivesse que escolher um só ser humano com modelo de quem cumpriu a mensagem de Jesus da forma mais humanamente possível seria ela. Para ela, parece nunca haver tempo ruim, porque nada parece ser tão difícil; nunca reclamando de nada; sem fazer a menor questão de colocar seus interesses em primeiro lugar; disposta a ajudar mesmo quando ela própria precisa de ajuda; dando a maior força para os filhos, jamais proferindo uma palavra de desencorajamento. Além disso, nas imagens da minha infância ela sempre aparece com alguma música nos lábios, em meio à rotina da casa e da vida.

Se um dia eu conseguir ser metade do que ela é como cristã, já vou me dar por satisfeito.

Por outro lado, nada disso me impediu logo cedo de me deparar com as grandes questões da ciência e da humanidade. Meu pai dava aulas de história e geografia. Lia muito e a biblioteca dele sempre foi um lugar fascinante para mim. Ele tinha de tudo ali e não nos ocultava nada. Desde anuários do IBGE até a coleção completa dos Pensadores. Tinha Arquipélago Gulag, Conhecer, 1984, Gênios da Pintura, e milhares de outras coisas, romances, arte, estatísticas, mapas, ciência, psicologia, filosofia, teologia, política, história e o que você imaginar. Além dos livros, ele tinha uma coleção de minérios, onde vez ou outra ele adicionava um fóssil qualquer. Um dia aparecia com um dente de elefante fossilizado, outro dia com uma raiz parecida com mandioca, no outro, com um peixe impresso numa rocha vinda do Ceará. Essas coisas sempre vinham acompanhadas de comentários e informações: “ali pode ter sido um mar”, dizia ele.

Meu pai apontava para o céu e me explicava: “aquelas três estrelas são o cinturão do caçador, aquelas duas ali, os seus cães de caça”, ou, “aquele avermelhado ali é um planeta, por isso ele muda de posição, enquanto as outras estrela não”.

Assim eu aprendi o que era um ano-luz, o nome das caravelas de Colombo, o que foi Pangea e Gondwana, muito antes de ser ensinado na escola, e milhares de outras coisas que o currículo escolar nunca ensina.
Por tudo isso, eu desde cedo desenvolvi uma curiosidade incomum, seja nos parâmetros cristãos, sejam ateístas.

Mais tarde eu comecei a criar peixes ornamentais. Cheguei a ter oito aquários ao mesmo tempo. Consegui reproduzir várias espécies, primeiro as vivíparas, mais fáceis, depois ovíparas, arriscando até desenvolver algumas variedades, coisa que eu tive que interromper por falta de espaço. Eu via como cada espécie se integrava ao seu ambiente, como todas as famílias tinham coisas em comum, me impressionava com a forma de um peixe adaptado para viver deitado no fundo de areia, com seus dois olhos voltados para cima, ou com outro, capaz de guardar na boca toda a prole depois soltá-la intacta, após o perigo ter passado.
Aquilo me impressionava. Eu via lógica, via engenhosidade e, se a dedicação do autor se expressa na excelência da obra, eu via naquilo tudo a expressão máxima de dedicação de um autor por sua obra.
Assim, quando na adolescência eu resolvi assumir minha fé com minhas próprias pernas, Deus não era para mim um desconhecido que eu tinha encontrado pela primeira vez e que eu teria que passar muito tempo ainda testando para ver se dava para confiar. Deus era o resultado lógico de uma visão de mundo construída ao longo de anos. Ele era sem dúvida o designer engenhoso e detalhista de um universo amavelmente ajustado para hospedar o homem, e mais, esse homem era eu.

Num certo ponto, acontece isso que os céticos enxergam como o fim dos questionamentos. Mas não é isso que ocorre. Não é que questionamentos não aconteçam mais, mas após algumas convicções e experiências, simplesmente está fora de cogitação rejeitar a existência de Deus por causa de algum percalço ou dúvida específica. Deus já se revelou. Você negá-lo não vai resolver a questão que por acaso está em aberto e vai acaber criando outras, ainda mais incontornáveis.

Para um cristão num certo estágio é mais provável uma vontade de questionar a atitude de Deus, a postura de Deus, do que a existência dele propriamente dita. Por isso eu entendo com um grau razoável de certeza que a postura mais comum de quem perde a fé depois de uma certa altura não é o ateísmo do “Deus não existe”. É um distanciamento frio do “Deus não faz diferença”. Acho que muita gente sabe bem do que eu estou falando.

Para o cético, uma das maiores barreiras a dificultar a crença em Deus parece ser a questão da origem da vida. Curiosamente, a primeira vez que um ateu me chamou de “bitolado” foi por causa disso. “Não pergunta para ele que ele é crente. E crente é bitolado”, disse ele para um outro colega que estava junto numa discussão. Foi ao vivo, muitos anos antes da Internet facilitar esse tipo de confronto.
Eu fiquei sem ação. Pela primeira vez eu vi alguém levando a sério aquelas brincadeiras classistas que todo mundo faz, mas ninguém acredita: que todo engenheiro é metódico, todo arquiteto é viado, todo judeu é pão-duro, toda loira é burra. Ele acreditava mesmo naquilo: “crente é bitolado”.
Para ele o dilema da criação era um sério problema. Para mim, nunca foi.

Eu vi que a ciência nos possibilitou entender a complexidade do universo, mas também vi que nem de longe conseguiu responder muitas das questões que mais afligem e intrigam o ser humano. Nem mesmo no âmbito da simples natureza ela tem todas as respostas. É difícil colocar um canguru dentro de um barco no Oriente Médio? Mas é igualmente difícil explicar como um peixe de 40 milhões de anos pode existir tanto na África e na América se elas se separaram a 100 milhões de anos.

Entendi que o que ciência oferece é apenas uma fração da nossa compreensão do universo e da nossa vida.
Portanto, se eu posso aceitar a ciência pelo que ela responde, sem rejeitá-la pelo que ela não responde, então não há mistério em aceitar a Bíblia pelo que ela responde, independentemente daquilo que ela não responde.

O que eu fiz ao longo de todo esse tempo foi sistematizar alguns conceitos que na verdade já existiam e já foram colocados ao longo da longa história da humanidade.
Eu comecei a descobrir que muitas pessoas já haviam feito as mesmas perguntas que eu, algumas com respostas, outras não. Algumas convincentes, outras não.
Toda vez que isso acontece eu questiono a existência de Deus. Mas também questiono a sua inexistência.
Para um cristão – eu, no caso – questionar a fé vai mais além de um simples “será que Deus existe?” Eu faço isso nem sempre por dúvida, mas até para analisar e entender alguma coisa melhor.

Isso eu já fiz colocando na balança questões filosóficas, morais, naturais. “Se Deus não existe então como é que fica isso? E se Deus existe, como é que fica isso”.
Da minha parte, o que eu observo é que ser teísta é uma vantagem nessa hora, porque eu tenho mais liberdade e menos bloqueios para fazer a mesma pergunta nas duas vias, da existência e da não existência, enquanto vejo que para muitos céticos agnósticos ou ateus, o exercício de perguntar “como seria isso se Deus existisse”, simplesmente não é levado em conta. Basta para eles uma explicação do ponto-de-vista da não existência e o questionamento para por aí.

Há questões em aberto? Provavelmente. Eu tenho uma frase para isto:
“Se Deus existe, algumas coisas são difíceis de explicar, se ele não existe, algumas são impossíveis de explicar.”
Só não venha ninguém questionar minha fé com brilhantes teorias sobre Inteligência Emocional, psicologia evolutiva, genealogias de Jesus, ou por causa das bruxas que os puritanos mataram.

E, para quem leu até aqui, o que eu posso dizer para concluir é que na minha experiência, o mundo, a vida, o homem permanecem explicáveis somente na condição da existência de Deus. Por isso minha fé permanece.
Não é preciso necessariamente ter tanta informação assim. Nem é impossível sem ter tido pais como os meus. Quando se conhece uma pessoa real você pode rejeitar conviver com ela, pode evitá-la, mas não dá para negar honestamente que ela existe.
Deus antes de mais nada é alguém com que se pode ter um relacionamento. No meu caso o caminho para descobri-lo tem sido esse.

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